Sou amálgama de Fênix e Frankenstein e cada dia me flagela com mais mortes, o que eu respondo com mais renascimentos. Criativo, o divino Piadista Sádico tem se esmerado em perversidade, desferindo com seu braço pesado golpes variados e letais. Insolente, persistente e orgulhosa, reorganizo meus pedaços, amontôo minhas cinzas, colo meus cacos e costuro meus pequenos mortos - renasço, carregando minha desafiadora coroa ruiva. Que venham outros golpes e que este Deus use de maior empenho, pois a cada vez refaço-me mais depressa, volto mais resistente, menos crente e tão mais perseverante que beiro às raias da petulância. Aceito e agradeço o dom de renascer, maldição e bênção que me vieram desde o nascimento - e fez-se a Re-nata.
Após tantos desencontros, aceito também a solidão que tantos renascimentos me impuseram. Pouco se dá se a Fênix morreu, pois que renasce - e, assim, aqueles que eu amo se esquecem de cuidar de mim, mesmo que eu não precise, ainda que eu não peça - e também quando eu peço. Minhas lágrimas e meus apelos já não causam urgência, encontram ouvidos surdos e olhos cegos. Bocas e mãos prontas a pedir, a demandar - a força da ave que é Frankenstein a todos pode salvar, a todos resgata do poço profundo e escuro em que se recolheram. Que importa se eu clamo, se eu grito, se eu desmorono? É preciso que minhas mãos continuem fortes e meu corpo continue solidamente fincado à vida, pois é em mim que os náufragos vêm se apoiar.
- Fênix! onde está sua mão firme? Onde está sua vontade inquebrável?
- Estou em cinzas, estou morta, deixe-me refazer. Estou aos pedaços, dê-me um pouco do seu amor.
Que amor? É neste momento que a Fênix, cuja força deriva da sua dúbia natureza ave-monstro, é vista somente como o Frankenstein, criatura mal cosida e disforme, colossal em seu desvio, excrescência da sociedade que teima em se debater ante à tortura das suas diversas mortes. Indigno, o monstro chora e pede e a ele é negado o alívio que um pequeno gesto de carinho traria. Que o monstro se reconstrua sozinho, que se vire com seus pedaços e lágrimas! Aqueles a quem eu amo querem somente a Fênix glamourosa e renascente, a ave que recende a mirra, nardo e canela; dourada e flamejante, a sorrir e persistir através de tormentas, pestes e guerras, com a sólida resistência conferida por sua parte monstro.
E que suas lágrimas sejam silenciosas, que seus soluços não perturbem o curso e o precioso cotidiano de seus amores. Que falhe consigo, nos subterrâneos do seu corpo duplo, que esmoreça no escuro! E que não falte jamais a eles sua força - deixe de renascer, alinhave os pedaços mortos, mas dê a eles a força que não tem, a custo da sua alma, se preciso for. Estenda sua mão firme, ou será o Frankenstein, criado a partir de refugos, cuja aparência monstruosa certamente lhe infere tal maldade e comportamento vil que deve ser tratada a ferro e repudiada com desdém e desprezo que só os homens sabem ter para com os monstros.
A solidão não incomoda mais. Viver à marginalidade e apoiar senão em mim mesma fazem parte de todos os dias dos meus 340 anos. Mesmo sendo terreno fértil para as esperanças baratas que brotam e brotam em mim, verdes e ordinárias, a ilusão de companhia já não faz parte do que cultivo. Ao contrário, anseio pelo dia em que, verdadeiramente desacompanhada, minhas mãos e minha força se constituirão em refúgio para as criaturas que do meu ventre vieram; para quando precisarem de água, descanso e repouso entre as batalhas das suas próprias vidas.
A mim, diferença nenhuma faz que os humanos enxerguem-me como Fênix ou Frankenstein. Desde que me deixem prosseguir no meu sagrado ciclo de morte e renascimento, sozinha e ruiva a voar pelos meus sonhos. De amor já estou farta. Prescindo dele agora, abdico já - só me deixem cumprir meus destinos, sem suas presenças exigentes e sufocantes.
domingo, 3 de dezembro de 2006
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