sexta-feira, 29 de setembro de 2006

lento e tortuoso declínio de uma selvagem

Para um anti-social que me exorta a ser social. Que não é ruivo, mas é marginal.

Se eu sentisse que escolhi esta vida, talvez ela não me fosse tão penosa, tão pesada. Parece que ainda estou tentando me adaptar à uma situação que aconteceu depressa demais, porém sei que não é verdade. Já não é mais verdade, embora tenha sido, há alguns anos, quando você me disse que minha vida parecia um bonde rumando velozmente, enquanto eu tentava, sem sucesso, um lugar dentro dele.


Hoje, muito mais que um mero assento no bonde, sei que me apropriei dele de tal forma que quase podemos dizer que o conduzo. Mas é quase, é quase! Pois, não é este o caminho pelo qual eu queria seguir, muito menos este um bonde que planejava conduzir. Estou a serviço deste bonde, mas ele não me leva a lugar algum que eu tenha desejado. Se é que eu ainda seja capaz de reconhecer o que desejo.


Minha vida anterior não era de gozo e prazeres apenas; era de trabalho árduo, de solidão, de liberdade, de escolha, responsabilidade e também, também!, gozo e prazeres! Hoje eu os tenho? Uma ruiva selvagem, que sabia seguir o que queria, sabia negar o que não queria, arcando com todas as responsabilidades das suas escolhas. Inclusive, a de ser só. Social quando queria, anti-social quando me enojava; acompanhada na folia e invariavelmente só no trabalho e na dureza. Por escolha.


Por escolha e barbárie, podia dar de ombros às convenções sociais cretinas, aos malabarismos fúteis, ao irritante cacarejar no galinheiro social. Veja o que eu sou agora! Uma senhora burguesa! Qualquer selvagem, que conserve um resquício que seja de sua natureza indomável, sente-se aprisionado e impotente dentro da pele de uma senhora burguesa! E quem há de vir me dizer que a gente escolhe a vida que tem? Ou é esse a quem chamamos de Deus que faz as piadas mais tortuosas com aqueles pobres mortais que ousam sonhar um pouco além?


Uma senhora burguesa que nem é burguesa, pois tem que trabalhar arduamente para ajudar a prover o sustento da família. Uma perfeita senhorinha burguesa pagaria com mais facilidade a escola das suas filhas, não teria dívidas nem parcos bens. Cadê o cabeleireiro e o maquiador de plantão? Meus deveres nós conhecemos bem, devo ser a esposa inteligente e companheira do marido, devo ser a cunhada acolhedora, a boa filha, a mãe paciente, devo sorrir agradavelmente para aqueles me reservam a mais solene ignorância, enquanto dedicam patética e reverencial adoração ao senhor meu marido. E, como não convém nem um pouco a uma senhora burguesa, devo também cuidar da empresa do meu marido, ser sua agente de relações públicas, defender seus interesses, orar pela sua saúde, vigiar suas costas e trazer um pouco de bom senso para quem é, essencialmente um gênio público com um certo comprometimento emocional. Ah, para quem já não é pessoa física, mas pública. Um pouquinho autista. Esquecido da sua senhorinha. Adorável distraído.


Meu intestino grita, minhas entranhas se retorcem porque se recusam a se acomodar neste corpo de senhora burguesa, que já até se tornou roliço, para que possa arcar com os deveres da senhorinha e da mula. Isso, mula. M-U-L-A, daquelas de carga mesmo.

Se for para ser mula, que eu pelo menos possa dar meus coices! Que se dane essa gentalha que acha que pode apontar seu dedo acusador e me julgar por ter demorado a retornar um telefonema, quando minha cabeça está pegando fogo e meu corpo caindo do abismo. Todo mundo tem seus problemas? Sim, sim, eles têm! Eu também tenho e quero gritar um “DANE-SE” para todos eles, desde que me deixem em paz. Ninguém vem me oferecer ajuda mesmo. Tampouco estou pedindo nada, apenas que não me venham com mais demandas. E inúteis.


Se for para ser a senhorinha, que eu seja de porcelana e que me tratem como a um bibelô, por favor. Que eu sou frágil, não posso ser exposta ao sol e sei me comportar como uma verdadeira madame em todos os aposentos públicos. E sei me tornar profana na alcova. Daí, sim, talvez eu consiga engolir o asco e curvar-me até com gosto, quem sabe?, às tais convenções e à dança social.


Nós, que já passamos do básico, não vamos cair na tentação de dizer que minha revolta é um traço de adolescência tardia e que eu quero apenas uma vida de gozo e prazeres. Eu quero é minha liberdade de volta. Eu quero é poder dar de ombros, é poder ser selvagem, é poder ser louca quando me der vontade. Porque quem paga minhas contas sou eu, quem se deita comigo sou eu e quem agüenta meus pensamentos extravagantes sou eu. Quem acorda de noite assustada pelos meus demônios sou eu e quem cuida, vela e teme pelas minhas crias sou eu.


Eu sou selvagem e estão matando isso em mim. A civilização vai acabar com a minha espécie. Os ruivos são atávicos, seremos extintos e essa terra de morenos e falsas loiras gosta demais da superficialidade. Nós, os ruivos selvagens, estamos fadados a morrer. Extintos. De tédio. De desgosto.


É isto. Estou em revolta. E minha raça está em declínio.

domingo, 24 de setembro de 2006

entre retalhos e entranhas

Há uma verdade que venho escondendo tão profundamente em mim que mal ouso pensar nela. Ao menos tentei te enganar com meias verdades e pequenas distorções. Não, eu a enterrei no mais escuro de mim, mesmo sabendo o horror que isto me traria. Mesmo sabendo as conseqüências que viriam – e vieram – afligir meu corpo.

Se tivesse conseguido momentos de alívio enquanto a mantive enterrada, talvez tivesse valido a pena.

Uma vez, tive um acidente no laboratório cacos de vidro entraram em minha mão. O ferimento foi pouco profundo, mas dolorido, e não consegui tirar todos os resíduos. Doía ter que mexer no corte para tirar os cacos e, então, deixei algum passar desapercebido. O corte inflamou, minha carne tentando expelir aquele corpo estranho; tive que cavoucar novamente a ferida, agora com dor muito maior, em busca do caco. A inflamação e o inchaço eram tantos que, mais uma vez, a busca resultou inútil. E eu deixei. Dava pouca atenção ao fato do corte demorar tanto a cicatrizar. Dava pouca atenção ao latejar constante da inflamação que abrandava, mas não cessava. Foi se abrandando aos poucos, até que eu me esquecesse do corte. E um dia, a pele expeliu o caco de vidro.

Desta vez, ferida por minha verdade-caco, agüentei por meses o latejar incessante da inflamação, esperando que desaparecesse. Se eu não olhasse, se escondesse e a todo custo suportasse a dor surda, um dia meu próprio corpo se livraria da verdade-caco que eu tentei esconder. A inflamação está aqui, aumentando a cada dia, sem sinal algum que vá se curar por si mesma. Se eu não expuser a verdade-caco, vou continuar inflamada.

Já sei o que vai ser de mim depois que te contar. É como se eu tivesse saído sem roupas pelas ruas. Aquela mesma sensação que temos nos sonhos, quando estamos em um lugar público e, repentinamente, nos damos conta que estamos de pijama, ou nus. Pior que estar apenas nua, estarei eviscerada. O caminhão verdade passou sobre mim, ou a faca verdade me retalhou. Pouco importa a metáfora. Estarei nua, sobre o chão sujo, com as entranhas de fora.

E é tudo surreal, grotesco e subvertido, o mesmo mundo paralelo e incompreensível dos meus sonhos. É difícil avaliar o que me incomodará mais, estar nua, estar no chão sujo, estar com minhas vísceras para fora, tentando acomodá-las de volta em minha barriga ferida. Não há espectadores se espantando com a visão medonha; mesmo assim, estar nua me deixa desconfortável, a sujeira do chão me enoja. Quedo-me atônita ante minhas entranhas expostas: o que fazer com elas?

Tudo em mim está exposto. Minhas entranhas desencontradas constituem risco muito maior ao meu corpo e à minha sanidade do que minha nudez no meio da sujeira. Ainda assim, continuo, atônita, sem saber o que fazer da nudez e da evisceração.

Esta paralisia inevitavelmente me levará a uma fatalidade maior. E continuo inerte.

Também não te revelei ainda a tal verdade, reparaste?

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

aos pares

E nossas mãos.

Eu te perturbo porque preciso. Incomodo-te cônscia da necessidade que me move: perturbar-te é imperativo para que mantenha viva minha essência e não me torne, eu mesma, arremedo de quem sou. Como tu, que carregas como cruz os desejos a que não te permites, a vida que te negas e tudo aquilo que preciso ver para não me transformar no que mais me assusta: tu.

Tudo em nós é duplo, dúbio, antagônico e complementar. Somos extremos que se complementam e se repelem. Eu te amo, mas te odeio e tens em ti o que me encanta e repudia. Tudo em nós vem aos pares, gêmeos opostos, como nossas próprias mãos: a destra e a esquerda, imagens quase espelhares de si mesmas – duas.

Coerente à nossa natureza, perturbar-te vem como dor e prazer. É com prazer de quem se vinga que inflijo os pequenos golpes na organização do teu dia-a-dia. É com melancólica doçura que me redimo das minhas vilezas. É com raiva que aceito teu perdão, mesmo precisando tanto da tua presença dupla, a que me ampara e a que me rejeita.

Tua existência vem à minha vida em dois níveis. Vivemos na superfície de nossos sentimentos e confinamos ao nosso porão todos aqueles sentimentos que não podemos soltar. Escondemos, obscuros, uma coleção de monstros subterrâneos e conversamos fingindo não ouvir seus urros. Que importa que clamem, que bradem? Importa é que no primeiro nível se conserve a calma enganadora da nossa não-relação. A verdadeira e monstruosa relação vai continuar confinada ao calabouço clandestino e escuro do que não se consuma.

Vivo como se tivesse tua mão sobre mim, ora a apoiar, ora a estapear. Duplo, dupla, par, que sina é esta que nos persegue? Tua mão a me guiar, a equilibrar meus passos inseguros. Tua mão que garante a tua presença perene, resistindo às perturbações que não me canso de cometer. Tua mão garante que estás a um grito de distância: “Vem!”, te suplico, “Vem que quase caio” e moves tua força silenciosa a me acudir.

E, também, também, também!, tua mão a me estapear a cara, impiedosa: “Acorda que a vida urge e não tens mais tempo para ilusões”. Implacável, tua mão é o grito que me tira do devaneio e me obriga à ação. “Anda!”, assim me apressas, “anda”, é assim o estalo do tapa, “Olha o corpo contíguo à esta mão que te castiga, olha bem o corpo que tanto queres e que te nego! Isto é o que não queres para ti! Não há tempo para quedar-te inerte. Anda!”.

Vês que esta tua mão talvez seja minha? E já nem sei mais o que é teu, o que é meu, o que acontece, o que sonho. Sei que preciso andar, sei que preciso dar voz ao uivo atormentado que se cala em meu peito. Sei que os sonhos estão lá, a espera do meu movimento.

E “lá” é um lugar a que se chega com dificuldade, mas a que se chega. Não é terra regada com leite e mel. É terra que demanda semente, cultivo constante e depois floresce. É terra fértil sob mãos laboriosas e perseverantes.

Queres juntar às minhas tuas mãos fortes? Há tanto espaço, “lá”, na terra em que nossos sonhos podem florescer; há espaço para nós, para a monstruosidade do nosso desejo, para a largura do nosso amor. Vem, minha voz agora te chama, vem comigo, quero mais do que tuas mãos, traz também teu corpo junto ao meu, que anseio tanto pelo teu calor, tua pele, teus olhos; vem!

Vem que viver é mais do que isto que temos agora.

Vem que viver parecer ser um sonho possível.