quarta-feira, 21 de março de 2007
maçã podre
Intoxicada pela libido que não se realiza, este foi seu diagnóstico. Você diz que fui envenenada pelas tantas vontades que saíram de mim, velozes, embocaram em rua pequena, atropelaram-se e quebraram os ossos na placa: "sem saída". Pois eu digo que lá, sob os pés da placa, deveriam jazer, apodrecer, estrebuchar, sabe Deus o quê - ou fossem lavadas pela chuva e tragadas pelas bocas-de-lobo. Desde que a mim não retornassem, tão tortas e disformes que, até eu - que dou jeito em tudo, nem eu soube o que fazer delas e deixei que aqui ficassem, decompondo-se no céu aberto dos meus dias esquerdos. E eis-me então: envenenada.
domingo, 11 de março de 2007
pai nosso, que não estais no céu...
O que se faz quando a inocência desapareceu tal e qual bruma no ar, sem vestígios, como se sequer tivesse existido? Quanto o solo dos nossos sonhos foi tão abusado que é agora árido - tão inóspito que nem as esperanças-daninhas brotam dele.
Pouso meu olhar, pardo e opaco, no terreno vazio e seco -- é áspera e rude a terra que deixo escoar pelos meus dedos; percebo, sem espanto, que tem agora a cor destes olhos que um dia foram ouro verde, flamejante.
Tantos anos lutando incansavelmente em busca da felicidade - sem êxito... Só acredito agora que ela é outra mentira, fantasia criada pelo Deus que não existe, o piadista sádico - este, que habita o céu que eu sei vazio.
Não desisto e rogo, talvez em desafio: "Deus, tem piedade de mim, anuncia em minha vida a chegada do inesperado, do bom, daquilo que me faz abrir os olhos de manhã e sorrir - apenas por estar viva". Ele pára, por breve instante, para me ouvir. Dá de ombros, ri despreocupadamente e volta a se ocupar com a incessante e divertida atividade de não-existir.
Pouso meu olhar, pardo e opaco, no terreno vazio e seco -- é áspera e rude a terra que deixo escoar pelos meus dedos; percebo, sem espanto, que tem agora a cor destes olhos que um dia foram ouro verde, flamejante.
Tantos anos lutando incansavelmente em busca da felicidade - sem êxito... Só acredito agora que ela é outra mentira, fantasia criada pelo Deus que não existe, o piadista sádico - este, que habita o céu que eu sei vazio.
Não desisto e rogo, talvez em desafio: "Deus, tem piedade de mim, anuncia em minha vida a chegada do inesperado, do bom, daquilo que me faz abrir os olhos de manhã e sorrir - apenas por estar viva". Ele pára, por breve instante, para me ouvir. Dá de ombros, ri despreocupadamente e volta a se ocupar com a incessante e divertida atividade de não-existir.
sábado, 10 de março de 2007
insanidade (por enquanto) temporária
Por horas, eu perdi o controle e rompeu-se o tênue fio que me segura à beira da razoável; estive além do limite do suportável, transtornada por tudo que é excessivo, exaustivo e incansável no decorrer da vida que eu ainda não sei se é minha.
E eu, que tanto temo a loucura, percebo que andamos lado a lado. Esta noite, sucumbi a seu encanto hipnótico e quase fatal. Esta noite, eu perdi meu eu e meu corpo mexia-se à mesma velocidade que meus pensamentos. Nesta noite, o sono não veio, a despeito daqueles que induzem ao sono e roubam meus sonhos - os sedativos. Mas, nesta noite eles não me concederam a pequena morte. Guiado pelo cérebro parte entorpecido, parte acelerado, meu corpo debateu-se por todos os cômodos desta casa-prisão, com minhas transtornadas pernas sendo o mais fiel retrato das minhas embaralhadas sinapses.
Inquietas, ansiosas, eu queria as cortar fora, estas pernas que eram excrescência maldita, a me perturbar por intermináveis segundos, minutos, horas! Eu grito, eu choro, eu oro para este céu vazio! para o Deus piadista! Eu choro, eu imploro, o cachorro late, as crianças se assustam. Como ébria, como maníaca, ando aleatoriamente pelos quartos e choro: por favor, eu só quero dormir, eu só quero que minhas pernas fiquem em paz. Que a cabeça seja essa tormenta, mas que o corpo descanse! E o Deus que não existe ri, satisfeito. Vêm os remédios, vêm o sono - o pequeno torpor. Não vem o esquecimento e, ao despertar, imediatamente me lembro que os mesmos dias miseráveis esperam por mim - e pelas minhas pernas.
Esta vida me vem como avalanche, como vulcão em erupção - a lava me persegue e corro, corro além do limite das forças que já foram exauridas - eu corro. Para salvar isto - isto, a que chamo de mim - eu fujo, usando energia que eu não tenho. E tal energia é confundida com ânimo, persistência e vitalidade. Pior: com vontade.
Não! Que eu só tenho vontade de ser engolida pela lava e finalmente cremada. Ainda que eu não renasça, ainda que eu me acabe com as cinzas que o vento há de dispersar por terra sem dono. Ainda que a fênix seja nada mais que lenda.
Que a lava me destrua, derreta este corpo de ave-Frankenstein, essa colcha de retalhos de pedaços de cadáveres - que meu corpo seja queimado. Não preciso do grande espetáculo, da explosão, das faíscas. Que imediatamente derreta, se funda à lava - pouco importa se nem cinzas sobrarem.
Importa é que o vulcão seja meu, que sua lava venha a mim e, tal qual manto dourado e laranja, abrigue e incendeie este costurado corpo morto, antes que a insanidade o faça.
E eu, que tanto temo a loucura, percebo que andamos lado a lado. Esta noite, sucumbi a seu encanto hipnótico e quase fatal. Esta noite, eu perdi meu eu e meu corpo mexia-se à mesma velocidade que meus pensamentos. Nesta noite, o sono não veio, a despeito daqueles que induzem ao sono e roubam meus sonhos - os sedativos. Mas, nesta noite eles não me concederam a pequena morte. Guiado pelo cérebro parte entorpecido, parte acelerado, meu corpo debateu-se por todos os cômodos desta casa-prisão, com minhas transtornadas pernas sendo o mais fiel retrato das minhas embaralhadas sinapses.
Inquietas, ansiosas, eu queria as cortar fora, estas pernas que eram excrescência maldita, a me perturbar por intermináveis segundos, minutos, horas! Eu grito, eu choro, eu oro para este céu vazio! para o Deus piadista! Eu choro, eu imploro, o cachorro late, as crianças se assustam. Como ébria, como maníaca, ando aleatoriamente pelos quartos e choro: por favor, eu só quero dormir, eu só quero que minhas pernas fiquem em paz. Que a cabeça seja essa tormenta, mas que o corpo descanse! E o Deus que não existe ri, satisfeito. Vêm os remédios, vêm o sono - o pequeno torpor. Não vem o esquecimento e, ao despertar, imediatamente me lembro que os mesmos dias miseráveis esperam por mim - e pelas minhas pernas.
Esta vida me vem como avalanche, como vulcão em erupção - a lava me persegue e corro, corro além do limite das forças que já foram exauridas - eu corro. Para salvar isto - isto, a que chamo de mim - eu fujo, usando energia que eu não tenho. E tal energia é confundida com ânimo, persistência e vitalidade. Pior: com vontade.
Não! Que eu só tenho vontade de ser engolida pela lava e finalmente cremada. Ainda que eu não renasça, ainda que eu me acabe com as cinzas que o vento há de dispersar por terra sem dono. Ainda que a fênix seja nada mais que lenda.
Que a lava me destrua, derreta este corpo de ave-Frankenstein, essa colcha de retalhos de pedaços de cadáveres - que meu corpo seja queimado. Não preciso do grande espetáculo, da explosão, das faíscas. Que imediatamente derreta, se funda à lava - pouco importa se nem cinzas sobrarem.
Importa é que o vulcão seja meu, que sua lava venha a mim e, tal qual manto dourado e laranja, abrigue e incendeie este costurado corpo morto, antes que a insanidade o faça.
quarta-feira, 7 de março de 2007
a long way from home
Já não reconheço meus desejos, a ponto de acreditar que não tenho nenhum; os dias tardam, cada hora se alonga em demasia. O que falta me envenena lentamente, até que eu sinta falta das garras do monstro que anteriormente rasgava minha carne. Era vida, era pulsação, perturbação; era mais do que essa falta, essa ausência maldita que se espalha pelas minhas células, tomando posse do que um dia foi meu e somente meu reino.
Hoje não tenho corpo, célula, vontade ou reino, tenho este vácuo que se espalha sem restrição, avançando e destruindo tudo o que lateja. Mantenho-me a distância de mim, desse eu cinza e lúgubre que a nada e por nada se perturba. Se eu chegar perto, temo ser violentamente tragada pelo vazio que hoje sou eu. E é quase como se eu fosse duas, dissociadas - a esvaziada e a órfã. Esperança e ilusão foram meus pais e sinto que os perdi cedo demais; não tenho porto, não tenho abrigo ou referências. Não tenho vontade.
Não tenho pais e a minha é uma casa devastada, cujos móveis maltratados espalham-se desordenadamente pelos cômodos entristecidos. As paredes descascam, o assoalho descorou-se há muito. O que resta dos tapetes roídos é de cor esmaecida e triste e um vento frio insiste em me castigar a cada vez que ouso passear pelos corredores do que um dia foi meu lar.
Sometimes I feel like a motherless child
from « American Negro Spirituals»
by J. W. Johnson, J. R. Johnson, 1926
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
A long way from home...
Hoje não tenho corpo, célula, vontade ou reino, tenho este vácuo que se espalha sem restrição, avançando e destruindo tudo o que lateja. Mantenho-me a distância de mim, desse eu cinza e lúgubre que a nada e por nada se perturba. Se eu chegar perto, temo ser violentamente tragada pelo vazio que hoje sou eu. E é quase como se eu fosse duas, dissociadas - a esvaziada e a órfã. Esperança e ilusão foram meus pais e sinto que os perdi cedo demais; não tenho porto, não tenho abrigo ou referências. Não tenho vontade.
Não tenho pais e a minha é uma casa devastada, cujos móveis maltratados espalham-se desordenadamente pelos cômodos entristecidos. As paredes descascam, o assoalho descorou-se há muito. O que resta dos tapetes roídos é de cor esmaecida e triste e um vento frio insiste em me castigar a cada vez que ouso passear pelos corredores do que um dia foi meu lar.
Sometimes I feel like a motherless child
from « American Negro Spirituals»
by J. W. Johnson, J. R. Johnson, 1926
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
Sometimes I feel like a motherless child
A long way from home...
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