Eu te perturbo porque preciso. Incomodo-te cônscia da necessidade que me move: perturbar-te é imperativo para que mantenha viva minha essência e não me torne, eu mesma, arremedo de quem sou. Como tu, que carregas como cruz os desejos a que não te permites, a vida que te negas e tudo aquilo que preciso ver para não me transformar no que mais me assusta: tu.
Tudo em nós é duplo, dúbio, antagônico e complementar. Somos extremos que se complementam e se repelem. Eu te amo, mas te odeio e tens em ti o que me encanta e repudia. Tudo em nós vem aos pares, gêmeos opostos, como nossas próprias mãos: a destra e a esquerda, imagens quase espelhares de si mesmas – duas.
Coerente à nossa natureza, perturbar-te vem como dor e prazer. É com prazer de quem se vinga que inflijo os pequenos golpes na organização do teu dia-a-dia. É com melancólica doçura que me redimo das minhas vilezas. É com raiva que aceito teu perdão, mesmo precisando tanto da tua presença dupla, a que me ampara e a que me rejeita.
Tua existência vem à minha vida em dois níveis. Vivemos na superfície de nossos sentimentos e confinamos ao nosso porão todos aqueles sentimentos que não podemos soltar. Escondemos, obscuros, uma coleção de monstros subterrâneos e conversamos fingindo não ouvir seus urros. Que importa que clamem, que bradem? Importa é que no primeiro nível se conserve a calma enganadora da nossa não-relação. A verdadeira e monstruosa relação vai continuar confinada ao calabouço clandestino e escuro do que não se consuma.
Vivo como se tivesse tua mão sobre mim, ora a apoiar, ora a estapear. Duplo, dupla, par, que sina é esta que nos persegue? Tua mão a me guiar, a equilibrar meus passos inseguros. Tua mão que garante a tua presença perene, resistindo às perturbações que não me canso de cometer. Tua mão garante que estás a um grito de distância: “Vem!”, te suplico, “Vem que quase caio” e moves tua força silenciosa a me acudir.
E, também, também, também!, tua mão a me estapear a cara, impiedosa: “Acorda que a vida urge e não tens mais tempo para ilusões”. Implacável, tua mão é o grito que me tira do devaneio e me obriga à ação. “Anda!”, assim me apressas, “anda”, é assim o estalo do tapa, “Olha o corpo contíguo à esta mão que te castiga, olha bem o corpo que tanto queres e que te nego! Isto é o que não queres para ti! Não há tempo para quedar-te inerte. Anda!”.
Vês que esta tua mão talvez seja minha? E já nem sei mais o que é teu, o que é meu, o que acontece, o que sonho. Sei que preciso andar, sei que preciso dar voz ao uivo atormentado que se cala em meu peito. Sei que os sonhos estão lá, a espera do meu movimento.
E “lá” é um lugar a que se chega com dificuldade, mas a que se chega. Não é terra regada com leite e mel. É terra que demanda semente, cultivo constante e depois floresce. É terra fértil sob mãos laboriosas e perseverantes.
Queres juntar às minhas tuas mãos fortes? Há tanto espaço, “lá”, na terra em que nossos sonhos podem florescer; há espaço para nós, para a monstruosidade do nosso desejo, para a largura do nosso amor. Vem, minha voz agora te chama, vem comigo, quero mais do que tuas mãos, traz também teu corpo junto ao meu, que anseio tanto pelo teu calor, tua pele, teus olhos; vem!
Vem que viver é mais do que isto que temos agora.
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