domingo, 24 de setembro de 2006

entre retalhos e entranhas

Há uma verdade que venho escondendo tão profundamente em mim que mal ouso pensar nela. Ao menos tentei te enganar com meias verdades e pequenas distorções. Não, eu a enterrei no mais escuro de mim, mesmo sabendo o horror que isto me traria. Mesmo sabendo as conseqüências que viriam – e vieram – afligir meu corpo.

Se tivesse conseguido momentos de alívio enquanto a mantive enterrada, talvez tivesse valido a pena.

Uma vez, tive um acidente no laboratório cacos de vidro entraram em minha mão. O ferimento foi pouco profundo, mas dolorido, e não consegui tirar todos os resíduos. Doía ter que mexer no corte para tirar os cacos e, então, deixei algum passar desapercebido. O corte inflamou, minha carne tentando expelir aquele corpo estranho; tive que cavoucar novamente a ferida, agora com dor muito maior, em busca do caco. A inflamação e o inchaço eram tantos que, mais uma vez, a busca resultou inútil. E eu deixei. Dava pouca atenção ao fato do corte demorar tanto a cicatrizar. Dava pouca atenção ao latejar constante da inflamação que abrandava, mas não cessava. Foi se abrandando aos poucos, até que eu me esquecesse do corte. E um dia, a pele expeliu o caco de vidro.

Desta vez, ferida por minha verdade-caco, agüentei por meses o latejar incessante da inflamação, esperando que desaparecesse. Se eu não olhasse, se escondesse e a todo custo suportasse a dor surda, um dia meu próprio corpo se livraria da verdade-caco que eu tentei esconder. A inflamação está aqui, aumentando a cada dia, sem sinal algum que vá se curar por si mesma. Se eu não expuser a verdade-caco, vou continuar inflamada.

Já sei o que vai ser de mim depois que te contar. É como se eu tivesse saído sem roupas pelas ruas. Aquela mesma sensação que temos nos sonhos, quando estamos em um lugar público e, repentinamente, nos damos conta que estamos de pijama, ou nus. Pior que estar apenas nua, estarei eviscerada. O caminhão verdade passou sobre mim, ou a faca verdade me retalhou. Pouco importa a metáfora. Estarei nua, sobre o chão sujo, com as entranhas de fora.

E é tudo surreal, grotesco e subvertido, o mesmo mundo paralelo e incompreensível dos meus sonhos. É difícil avaliar o que me incomodará mais, estar nua, estar no chão sujo, estar com minhas vísceras para fora, tentando acomodá-las de volta em minha barriga ferida. Não há espectadores se espantando com a visão medonha; mesmo assim, estar nua me deixa desconfortável, a sujeira do chão me enoja. Quedo-me atônita ante minhas entranhas expostas: o que fazer com elas?

Tudo em mim está exposto. Minhas entranhas desencontradas constituem risco muito maior ao meu corpo e à minha sanidade do que minha nudez no meio da sujeira. Ainda assim, continuo, atônita, sem saber o que fazer da nudez e da evisceração.

Esta paralisia inevitavelmente me levará a uma fatalidade maior. E continuo inerte.

Também não te revelei ainda a tal verdade, reparaste?

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