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sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

um dia de alma lúgubre e céu cinza

Foi inesperado e, como todo nascimento, veio através da dor.

Não o matei, mas tive que cuidar de todos os preparativos fúnebres de seu enterro.

Suspeito que tenha nascido já condenado. Dediquei a ele tanta alegria e energia que não tinha, mas arranjava. Foi vão, entretanto, o esforço todo e adivinhei a brevidade da sua existência -- sua morte não foi surpresa. Mesmo adivinhada, a morte dói latejante. Cuidar do seu enterro e pranteá-lo consumiu mais daquela energia que já não tinha para dedicar-lhe, resultando em falência - espero que temporária - do meu gerador energético.

Enterrei este sonho ao lado de tantos outros que tive, na mesma pradaria verde e ensolarada. Não há lápides ou quaisquer marcos no meu cemitério. Olhos atentos talvez percebam o pedaço de terra recém revolvida, onde a grama ainda cresce tímida e que hoje abriga seu mais recente inquilino, meu sonho morto.

Nesta cova, o ar é levemente mais fresco e o sol se lança com suavidade, permitindo que as sombras formem penumbra contida, velando pelo último sopro de esperança que lamenta e anseia por mais alguns segundos do sonho. Segundos, segundos, segundos que adoçariam minha boca, mente e meu corpo por momentos eternos.

Meu cemitério de sonhos é também um campo de flores. Espécies improváveis que brotaram de uma terra que abriga cadáveres de sonhos em putrefação. Nada mais forte e indomável que o poder transformador da Natureza, seus corpos e seres, que fazem vida e sorrisos surgirem de morte e pranto.

Até que o processo de transformação se complete, aquele vento quase gélido trará resquícios de aromas desejados e a memória de sentimentos que se recusam ou se demoram a morrer.

Visto de longe, é apenas um prado radiante e repleto de aromáticas flores coloridas. Não há quem imagine quantos sonhos precisaram ser enterrados, anônima e sileciosamente, sem o alarde dos grandes funerais; não há quem imagine de quantos sonhos mortos foram feitas estas flores, quase fúteis e vãs na sua beleza perecível.

(23/06/2006)

asas

Liberation - M. C. Escher


Ser Ruiva é uma revolta (in)voluntária numa terra de morenos. Ergo, insolente e orgulhosa, minha flamejante cabeça de mulher.

Habita um selvagem em mim, a quem dou vazão sempre que minha alma transborda a razão. Conheço tantos que fazem de seu peito uma gaiola. Sua fera luta arduamente e clama por liberdade, cravando as garras nas suas carnes. E eles ocupam, atordoados, seus dias, esperando ansiosos para que venha o cansaço e a fera adormeça.

Andam por aí contidos, evitando o perigoso movimento que pode acordar o indomável e reavivar a batalha, a cada dia mais insana, da busca pela liberdade. O corpo lhes arde como terra em chamas.

E é como terra devastada que ficam quando a fera finalmente desiste e se resigna à prisão. Vagando desolados pelo mundo que só enxergam como cinzas, fingindo não perceber que o ermo deste mundo habita seus próprios peitos. E que a vida é plena de oportunidades para quem não a teme.

Com minha coroa incendiária e minha alma selvagem, sigo para onde for. É a minha revolta voluntária contra quem pouco quer e pouco se permite.


(01/08/2006)



sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

porque os sonhos não morrem em vão

E as flores teimam em nascer e as esperanças não desistem

A leve brisa que refrescava o meu campo de flores, onde estão enterrados os meus sonhos, foi substituída por ar parado, pesado e quente. Como manto que, umedecido por inúmeras gotas de desilusão, encobriu esta pradaria cujos ornamentos coloridos velam por devaneios e paixões que um dia habitaram em minha alma.

Sob o cobertor sufocante, as flores perderam o viço e suas pétalas murcharam levemente. A terra que as alimenta é fértil, enriquecida por vitaminas que um dia estiveram nas fantasias hoje putrefadas. Aparentemente frágeis, elas hão de sobreviver ao quase fétido ar que hoje as tenta esmagar, pois é nesta terra plena que têm raízes profundas e fortes.

Noutro canto, terreno árido e pobre, vergam-se e morrem as esperanças daninhas. Elas, que eram abundantes e nasciam fáceis, agora não têm nada que as sustente, este solo não as quer e sua constituição é ordinária; seu verde desbotado e barato. Ressequidas, anseiam pelo frescor das lágrimas que não tenho -- e as últimas foram ásperas, amargas e salgadas, láudano escorrendo da minha alma entorpecida.

Durante dias breves demais, eu sonhei com um Urso -- ele, que se revelou criatura estranha, cuja essência em nada se assemelha com o que eu queria. Meu Não-Urso é anguloso e cultiva com prazer suas certezas absolutas; é contido em demasia, mas suas patas adquirem força que ele não consegue direcionar. Em um dos seus bruscos movimentos, ele quase me condena irremediavelmente à solidão e declara, decisivo, que me será impossível encontrar amor -- seja homem seja Urso, segundo aquele que não é, é pouquíssimo provável que encontre um que se digne a me amar.

É firme e duro o Não-Urso, mas a resistência é o meu reino e repudio com veemência suas palavras, que ele profere como quem amaldiçoa. A persistência está embutida nos ossos da Fênix, que teima em renascer após ciclos de vida e morte violentos e restauradores. Rechaço seu determinismo arrogante, ele que nada sabe, ele que mesmo sendo Não-Urso, hiberna como um - e se esqueceu de acordar.

Nos dias em que o calor é tal que abafa a aragem, me recordo do que ele disse, e vergo como as pétalas das flores que adornam os túmulos dos meus sonhos. É quase como praga que se abate sobre mim e contamina meus olhos, que enxergam na minha pradaria apenas o cemitério onde apodrecem os sonhos mortos, esfaqueados, abortados ou fenecidos e desnutridos. Mal consigo reparar a cor das flores e é sob a ausência dos meus olhos que elas murcham, vencidas pelo calor e pela desesperança.

Passam as horas e eis que surge ameaça -- ou promessa? -- de brisa. E como as esperanças daninhas pouco necessitam para sobreviver e porque a persistência quase cega é a minha essência de Fênix, eu ouso acreditar novamente em amor. Em merecer, encontrar e me realizar no amor.

E, se este for mais um sonho vão e morrer, nascerão outras flores para enfeitar e perfumar meu terreno.
(22/12/2006)

sábado, 19 de agosto de 2006

as plumas douradas do desejo

Há que se destruir a estátua feita de cinzas: ela é enganadora.

Como a fênix suporta seu interminável ciclo de morte e renascimento? Vive por cinco séculos, morre e renasce a partir das suas próprias cinzas, a nova fênix, paradoxalmente a mesma que morreu. Que realmente não é a mesma, pois a cada ciclo de 500 anos respira outras ares, cultiva diferentes sonhos, chora por outras desilusões.

Parece que nunca foi vista uma fênix pairando pelos céus do Egito e da Arábia, muito menos pelo poluído céu paulistano. Será que se cansou do eterno ciclo morrer-renascer e o interrompeu? Ela é conhecida através dos seus retratos: aparece sempre como uma ave bastante semelhante à aguia, com plumagem exuberante, porém, vermelha e dourada. Ruiva e re-nascida.

Como esta Re-nata aqui, cuja alma já não consegue elaborar novos sonhos, cansada de tantos ciclos de fênix. Como criar novas ilusões, sabendo que a maioria delas terá fatalmente como destino o naufrágio em alto mar ou os sete palmos de terra mais a pá de cal? É sedutor demais não sonhar, não almejar, não ansiar, evitando, assim, o risco da decepção. Sedutor e enganador, pois não seria, assim, um renascimento. Seria como se a fênix recolhesse suas cinzas e as moldasse em estátua na forma do corpo antigo, ao invés de reconstruir-se a partir delas. Seria uma representação morta de fênix, sem asas, sem plumagem de fogo, sem vida.

Não quero renascer, estou cansada do meu interminável ciclo: já nem sei mais quais sonhos sonhar. Já não sei mais o que quero, do que gosto, o que me satisfaz. Pelo quê lutar? A exaustão é tamanha que cega e ando às escuras, ainda um arremedo de Renata, atrasando minha reconstrução.

Com decepção, me vejo vivendo como aqueles por quem tanto me angustiei, escravos de um conjunto de neuroses e regras que os posiciona no mundo. Quero voar, não serei prisioneira de mim, estátua moldada em cinzas de antigos sonhos. Daonde virá a força que preciso para sonhar? A fé, a coragem, a esperança... Não esta esperança cinza, esta esperança resignada, este saber que assim é a vida e mais não há...

Viver assim é como morrer em vida, é perambular pelas ruas de São Paulo como um espectro, um fantasma que raramente reflete o arroubo de que era feito, as chamas da sua alma e do seu querer representadas por cor esmaecida e triste.

Reconstruir-se após a depressão é um longo processo. É preciso esquecer aqueles sonhos e ilusões enterrados ou naufragados. Não, talvez nem me lembre tanto deles. Lembro da quantidade de sonhos que foram mortos, apenas... Voltar a viver é poder voar, arriscar, querer, ansiar, desejar. Redescobrir ou recriar o desejo. O que eu quero?

Sair da ausência em si traz já enorme conforto. São os primeiros sinais de esperança, do sentir e do querer que se apoderam da nossa alma. O risco é se acomodar com os primeiros sinais, com a esperança meramente rascunhada, cujos traços mais marcantes são os da desilusão e da descrença.

Um segundo a mais que se permaneça neste estágio transforma o conforto em tortura. O corpo que não serve em mim, a alma que não suporta este corpo, um coração estranho a bombear sangue e vida pelas minhas veias tortuosas e quase revoltadas. Vida!, elas pulsam, vida!, queremos vida! Queremos que o sangue em nós corra como lava, aquecido por anseios, amores, desejos e, sim! Sim, também as tristezas e decepções que compõem esta jornada. Maldita ou bendita, nós queremos o movimento dos vivos.

A estátua não me serve, não a quero. Agora, mal consigo escapar do refúgio que nela fiz no primeiro momento. Mas, sei que urge o dia em que meus olhos se abrirão mais inocentes, meu corpo mais ágil, adornado com as plumas douradas do desejo. Com o arroubo daqueles que renasceram.

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

sonhos que se enterram a sete palmos

Foi inesperado e, como todo nascimento, veio através da dor.

Não o matei, mas tive que cuidar de todos os preparativos fúnebres de seu enterro.

Suspeito que tenha nascido já condenado. Dediquei a ele tanta alegria e energia que não tinha, mas arranjava. Foi vão, entretanto, o esforço todo e adivinhei a brevidade da sua existência -- sua morte não foi surpresa. Mesmo adivinhada, a morte dói latejante. Cuidar do seu enterro e pranteá-lo consumiu mais daquela energia que já não tinha para dedicar-lhe, resultando em falência - espero que temporária - do meu gerador energético.

Enterrei este sonho ao lado de tantos outros que tive, na mesma pradaria verde e ensolarada. Não há lápides ou quaisquer marcos no meu cemitério. Olhos atentos talvez percebam o pedaço de terra recém revolvida, onde a grama ainda cresce tímida e que hoje abriga seu mais recente inquilino, meu sonho morto.

Nesta cova, o ar é levemente mais fresco e o sol se lança com suavidade, permitindo que as sombras formem penumbra contida, velando pelo último sopro de esperança que lamenta e anseia por mais alguns segundos do sonho. Segundos, segundos, segundos que adoçariam minha boca, mente e meu corpo por momentos eternos.

Meu cemitério de sonhos é também um campo de flores. Espécies improváveis que brotaram de uma terra que abriga cadáveres de sonhos em putrefação. Nada mais forte e indomável que o poder transformador da Natureza, seus corpos e seres, que fazem vida e sorrisos surgirem de morte e pranto.

Até que o processo de transformação se complete, aquele vento quase gélido trará resquícios de aromas desejados e a memória de sentimentos que se recusam ou se demoram a morrer.

Visto de longe, é apenas um prado radiante e repleto de aromáticas flores coloridas. Não há quem imagine quantos sonhos precisaram ser enterrados, anônima e sileciosamente, sem o alarde dos grandes funerais; não há quem imagine de quantos sonhos mortos foram feitas estas flores, quase fúteis e vãs na sua beleza perecível.





FarmGarden ou Bauerngarten - Gustav Klimt, 1905-6

(11/08/1006)

quinta-feira, 27 de julho de 2006

a ascenção da fênix


A fênix vem muitas vezes retratada como ave e mulher - invariavelmente ruiva. Essa imagem é inacreditavelmente bela e quase dolorida, apesar do poder que as chamas evocam.

Agora, acho que posso conseguir um pouco de encanto leve. Lembram que eu escrevi que a esperança que volta após a depressão é cinza? É, a re-nata renascendo das cinzas, a fênix reconstruindo duramente sua forma e essência a partir das cinzas e da devastação. E nunca mais, nunca mais o mundo é visto com os mesmos olhos. Os olhos da fênix ficam, a cada renascimento, mas céticos, mais incrédulos, mais desesperançados. Ou não, essa não é uma boa palavra. Há a esperança, mas é a esperança cinza, é saber que a vida não é muito mais do que essa luta diária. É saber que amanhã vamos acordar, a luta do renascimento deve continuar, incessantemente, e a vida é isto. Mas, que felicidade estranha que conseguimos tirar desta vida cheia de percalços. Como temos conseguido ser felizes nestes tempos de guerra.

A reconstrução da fênix não é glamourosa. Mas, este não é o retrato de uma reconstrução, é já a ascenção. The rising phoenix.

Fênix. Re nata. Renascida.