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segunda-feira, 2 de outubro de 2006

teu sonho me castiga

Vai-te embora, que teu sonho é meu pesadelo. Teu sonho é o não que chicoteia a pele da minha realidade. Vai!

Fazer parte daquilo a que chamas teus sonhos e devaneio nunca me foi exatamente uma novidade. Ouvir-te admitir isto trouxe satisfação, alívio e, coerente com nossa ambigüidade, também desgosto e raiva.

Admites o que há tempos adivinhei. Secretamente satisfeita, deixo aflorar um quê de cinismo ao apontar minha carne voluptuosa: sonhos? Devaneios? Com este corpo aqui, este que freneticamente responde a mínimo gesto teu? Sarcasmo e desprezo, também, porque mereces. Sonhos e devaneios, oras bolas!

Este sonho compõe parte importantíssima da tua vida, dizes. Resignada, inconformada; febril e descrente, eu questiono: é o sonho melhor que a realidade? Não, um gemido, não, arfando, não, estar com você é muito melhor, é incomparável, você sabe – um suspiro. Mas, não quero – e desta vez, és muito mais firme.

O sonho é mais seguro, o sonho é mais seguro, o sonho é mais seguro, é o mantra latejando em minha têmpora. Não falo. Só latejo.

Não queres? Eu lamento. E voltas a dizer, certo, seguro: não. Pois não parece, instigo. Não é o que teu corpo diz. Tua boca diz sem palavras o que tua mente temerosa articula em sons, em léxico.

Deito em ti meu olhar, este que já conheces tão bem. Não se faz necessário que eu diga palavra sequer. Tantas já desperdicei... Aprendeste a ouvir tudo o que calo. Aprendeste a ouvir em meu silêncio e meus olhos.

Queres, sim, queres com fome, com voracidade – é o que meu olhar te diz, os lampejos dourados te lembrando dos minutos ardentes que há instantes tivemos. Eu, que conheço tão bem as variadas formas de desejar e ser desejada, sei que teu querer é tão maior que o mero desejo. Meu olhar amarelo te acaricia e te confronta; largo meu sapato e pouso meu pé indolente na tua perna. Na tua perna, queimando... Queimam também teus olhos, tua face rubra. Mantenho imóvel o pé, sem maior insinuação que minha pele em chamas contra a tua. Não me encorajas, tampouco me rejeitas. Vagarosamente, sinto tua mão quente sobre meu pé.

E sustentas meu olhar. Sequer tentas esconder teu desconforto, tua tormenta, teu desatino. Teu desejo implacável. Acreditei no teu discurso, acuso, suave. Acreditei que era possível, tu que tanto me queres; disseste que era assim a vida! Acreditei. E agora?

E agora, cá estamos, meu pé em tua perna, tua mão em meu pé. Queimando. Incompletos. Estamos onde não queríamos estar, aquém e além dos nossos desejos e quereres. Meu pé vai muito além do “não quero” que afirmaste, tão seguro. Meu pé fica muito atrás do que ansiamos tanto.

Nossas pulsações são rítmicas e violentas e espalham por todas nossas células o calor do desejo maldito. Esta praga que assola meus dias e minha alma, que impede que eu deixe de pensar em ti por um dia sequer. Esta praga que contamina teus sonhos e devaneios.

Se apenas estendesses as mãos, serias capaz de alcançar a realidade e tornar possíveis tuas fantasias. Por que te recusas tanto? Por que te negas tanto?

O que temes? É quase impossível sermos mais infelizes do que agora, sabendo que há outra vida para nós. Ter ultrapassado o limite e ter vislumbrado o novo arrebenta minha vida cotidiana. Esgota quaisquer possibilidades de manter toda esta organização intacta.

E alguém me ajude com os meus cacos, que não sei o que fazer deles. Não me explicas! Ordenas que eu siga, que eu vá, que tenha bom senso. Ordenas que me organize, cerre os olhos e continue, silente, a boca fechada sufocando o grito de angústia que eu quero dar.

Mal esfriou em mim o calor da tua boca, continua pulsando a pele que mordeste; meu corpo todo continua ansiando pelo teu! E segues, duro, impiedoso, tentando distanciar-te o mais possível de mim. Tua distância é curta, eu ainda te vejo, ainda te sinto! E quando quase te esqueço, voltas, tuas mãos famélicas, teus dentes de canibal, teu corpo selvagem.



quinta-feira, 7 de setembro de 2006

aos pares

E nossas mãos.

Eu te perturbo porque preciso. Incomodo-te cônscia da necessidade que me move: perturbar-te é imperativo para que mantenha viva minha essência e não me torne, eu mesma, arremedo de quem sou. Como tu, que carregas como cruz os desejos a que não te permites, a vida que te negas e tudo aquilo que preciso ver para não me transformar no que mais me assusta: tu.

Tudo em nós é duplo, dúbio, antagônico e complementar. Somos extremos que se complementam e se repelem. Eu te amo, mas te odeio e tens em ti o que me encanta e repudia. Tudo em nós vem aos pares, gêmeos opostos, como nossas próprias mãos: a destra e a esquerda, imagens quase espelhares de si mesmas – duas.

Coerente à nossa natureza, perturbar-te vem como dor e prazer. É com prazer de quem se vinga que inflijo os pequenos golpes na organização do teu dia-a-dia. É com melancólica doçura que me redimo das minhas vilezas. É com raiva que aceito teu perdão, mesmo precisando tanto da tua presença dupla, a que me ampara e a que me rejeita.

Tua existência vem à minha vida em dois níveis. Vivemos na superfície de nossos sentimentos e confinamos ao nosso porão todos aqueles sentimentos que não podemos soltar. Escondemos, obscuros, uma coleção de monstros subterrâneos e conversamos fingindo não ouvir seus urros. Que importa que clamem, que bradem? Importa é que no primeiro nível se conserve a calma enganadora da nossa não-relação. A verdadeira e monstruosa relação vai continuar confinada ao calabouço clandestino e escuro do que não se consuma.

Vivo como se tivesse tua mão sobre mim, ora a apoiar, ora a estapear. Duplo, dupla, par, que sina é esta que nos persegue? Tua mão a me guiar, a equilibrar meus passos inseguros. Tua mão que garante a tua presença perene, resistindo às perturbações que não me canso de cometer. Tua mão garante que estás a um grito de distância: “Vem!”, te suplico, “Vem que quase caio” e moves tua força silenciosa a me acudir.

E, também, também, também!, tua mão a me estapear a cara, impiedosa: “Acorda que a vida urge e não tens mais tempo para ilusões”. Implacável, tua mão é o grito que me tira do devaneio e me obriga à ação. “Anda!”, assim me apressas, “anda”, é assim o estalo do tapa, “Olha o corpo contíguo à esta mão que te castiga, olha bem o corpo que tanto queres e que te nego! Isto é o que não queres para ti! Não há tempo para quedar-te inerte. Anda!”.

Vês que esta tua mão talvez seja minha? E já nem sei mais o que é teu, o que é meu, o que acontece, o que sonho. Sei que preciso andar, sei que preciso dar voz ao uivo atormentado que se cala em meu peito. Sei que os sonhos estão lá, a espera do meu movimento.

E “lá” é um lugar a que se chega com dificuldade, mas a que se chega. Não é terra regada com leite e mel. É terra que demanda semente, cultivo constante e depois floresce. É terra fértil sob mãos laboriosas e perseverantes.

Queres juntar às minhas tuas mãos fortes? Há tanto espaço, “lá”, na terra em que nossos sonhos podem florescer; há espaço para nós, para a monstruosidade do nosso desejo, para a largura do nosso amor. Vem, minha voz agora te chama, vem comigo, quero mais do que tuas mãos, traz também teu corpo junto ao meu, que anseio tanto pelo teu calor, tua pele, teus olhos; vem!

Vem que viver é mais do que isto que temos agora.

Vem que viver parecer ser um sonho possível.

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

prazeres perversos

Já cumprimos rigorosamente a quaresma, o jejum imposto a fim de expurgar da nossa alma os pecados que a carne cometeu ou aqueles que nossa mente apenas imaginou e ansiou.

Ou...

Já finalizamos a quarentena, o perigoso vírus do desejo que contaminava nossos corpos já foi, senão completamente extirpado, muito atenuado.

Achas que podemos, enfim, nos encontrar? Fraternalmente, na segurança de um local público?

Antes de começar a escrever, já adivinhava tua resposta. Sem precisar de dotes mediúnicos, é fácil saber a negativa que virá. O que me leva a insistir? Um prazer mórbido, que castiga a tu e a mim. Um prazer cruel, de quem consegue se fazer atroz, ainda que por fugazes instantes. Um prazer do qual não me privo e que desfruto com gula, com ira, com luxúria - com todos os pecados que a ele puder atribuir.

Quanto maiores os pecados, quanto maior a atrocidade que nos inflijo, mais gozo.

Para aumentar aquilo que é teu deleite e tua tortura, segue um corte de uma pintura de Klimt.

Wasserschlangen II - Gustav Klimt (corte)


sexta-feira, 11 de agosto de 2006

sonhos que se enterram a sete palmos

Foi inesperado e, como todo nascimento, veio através da dor.

Não o matei, mas tive que cuidar de todos os preparativos fúnebres de seu enterro.

Suspeito que tenha nascido já condenado. Dediquei a ele tanta alegria e energia que não tinha, mas arranjava. Foi vão, entretanto, o esforço todo e adivinhei a brevidade da sua existência -- sua morte não foi surpresa. Mesmo adivinhada, a morte dói latejante. Cuidar do seu enterro e pranteá-lo consumiu mais daquela energia que já não tinha para dedicar-lhe, resultando em falência - espero que temporária - do meu gerador energético.

Enterrei este sonho ao lado de tantos outros que tive, na mesma pradaria verde e ensolarada. Não há lápides ou quaisquer marcos no meu cemitério. Olhos atentos talvez percebam o pedaço de terra recém revolvida, onde a grama ainda cresce tímida e que hoje abriga seu mais recente inquilino, meu sonho morto.

Nesta cova, o ar é levemente mais fresco e o sol se lança com suavidade, permitindo que as sombras formem penumbra contida, velando pelo último sopro de esperança que lamenta e anseia por mais alguns segundos do sonho. Segundos, segundos, segundos que adoçariam minha boca, mente e meu corpo por momentos eternos.

Meu cemitério de sonhos é também um campo de flores. Espécies improváveis que brotaram de uma terra que abriga cadáveres de sonhos em putrefação. Nada mais forte e indomável que o poder transformador da Natureza, seus corpos e seres, que fazem vida e sorrisos surgirem de morte e pranto.

Até que o processo de transformação se complete, aquele vento quase gélido trará resquícios de aromas desejados e a memória de sentimentos que se recusam ou se demoram a morrer.

Visto de longe, é apenas um prado radiante e repleto de aromáticas flores coloridas. Não há quem imagine quantos sonhos precisaram ser enterrados, anônima e sileciosamente, sem o alarde dos grandes funerais; não há quem imagine de quantos sonhos mortos foram feitas estas flores, quase fúteis e vãs na sua beleza perecível.





FarmGarden ou Bauerngarten - Gustav Klimt, 1905-6

(11/08/1006)