sábado, 13 de janeiro de 2007

gozo, lâmina, luz e desamor

Branco.
No piso, nas paredes; espelhos grandes e imaculadamente limpos. O sol invade e ilumina tudo, como se o inferno fosse o meio-dia no pólo norte. Fluorescentes e incandescentes, as luzes fazem as vezes de sol, para que nunca se encerre o expediente naquele que aparenta ser claro banheiro, mas é meu sítio de gozo e destruição.

É neste mundo que me escondo de ti, onde busco fugazes e intermináveis momentos de solidão e distração. Aqui, não me alcanças e não permito a entrada de nada do que é teu. Quando não suporto mais tua vida subjugada à minha; quando odeio o som do teu respirar; quando tua mera existência se apresenta como um monstro asqueroso obstruindo meu caminho – ah! Ah, eu entro no fulgurante refúgio – e é com calma, com prazer perverso que prolongo os passos que me levam à distração que me é tão necessária para sobreviver nesta prisão que é a vida contigo.

Meu corpo avança, reticente, e alcanço a gaveta onde os guardo – aqueles que me trarão foco, alívio e, sim, dor. Dentre os estiletes milimetricamente arranjados, escolho o recém afiado e a ansiedade toma de sobressalto os membros que antes agiam com vagar. Como viciada, meu coração se descontrola e a respiração se entrecorta, com um safanão me livro da blusa e o frio da lâmina sobre minha pele quente acelera minha pulsação, da mesma forma que antes tu me provocavas, quando ainda eras meu homem e me tomar te trazia mais satisfação que hoje o faz me rejeitar. Ofegante, eu corto, engulo com os olhos a inebriante visão da pele se rasgando e o sangue começa a escorrer, a tudo tocando com seus dedos rubros. Prossigo, minha pele branca eivada pelas incisões encarnadas que o estilete produz. Ao terceiro talho, já sinto o indescritível gozo e é com luxúria que retardo os movimentos e desfruto cada segundo, cada pedaço de pele que o estilete racha. Ah, a dor... É reconfortante a dor que vem dos cortes e me faz esquecer as outras, tão difusas, tão malditas.

O sangue jorra lentamente e eu deixo que trilhe minha pele, a pia e o piso, deixo que pinte a alvura, que deixe avermelhados os brancos; o braço dói a ponto de me fazer esquecer a dor de não mais te amar; desaparecem de mim os sinais que a tua rejeição continuada deixou, as profundas escaras que teu desprezo cavou em minha carne e hoje são cicatrizes horrendas do meu corpo aviltado. Mas, ah, que a dor de agora dilui e apaga tudo -- neste momento, doem os cortes que me infligi, é o latejar do braço que me faz chorar. Ah, que é assim que me irmano com os penitentes e seu apego pelo cilício; imagino que sentem como eu, o conforto em saber o cilício, o conforto ao mirar a gaveta onde alinho meus estiletes.

E, depois, deitar-me no chão com olhar quase esgazeado, quase hipnotizado: o sangue forma crostas no meu braço e o piso branco se embeleza com os laivos ruivos; absorta no meu refúgio, o tempo passa tortuoso, os minutos se prolongam em unidades desconhecidas para o mundo externo. Limpo meticulosamente os vestígios do meu vício, mas deixo o sangue a enfeitar minha pele.

Visto a blusa e saio do banheiro como adúltera – teu olhar desconfiado vasculha meu rosto, em busca infrutífera. Enxergas meu pecado, minha traição e sequer desconfias onde que se consumaram. Pensamentos perturbadores me ameaçam: e se eu ainda o amasse? E se houvesse menos rejeição? Inquieta, te lanço outro dos meus olhares amarelos: e se tomasses violentamente o corpo desta que um dia foi mulher e um dia foi tua? E se colocasses luxúria onde eu coloco lâminas?

E porque estas perguntas me abalam demais e porque a resposta a elas vem sempre desenhadas com o “não” e porque já não te suporto, saio de tua vista e vou a um canto qualquer, onde me acalmo com a visão do sangue seco das feridas que me fiz – tirei de ti o poder de me cortar.

As lesões me consolam e confortam – melhor que as limpe e cuide, precisarei logo que esta pele se refaça; meu vício cresce conforme aumenta em mim o repúdio por ti.

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