quarta-feira, 30 de agosto de 2006

prazeres perversos

Já cumprimos rigorosamente a quaresma, o jejum imposto a fim de expurgar da nossa alma os pecados que a carne cometeu ou aqueles que nossa mente apenas imaginou e ansiou.

Ou...

Já finalizamos a quarentena, o perigoso vírus do desejo que contaminava nossos corpos já foi, senão completamente extirpado, muito atenuado.

Achas que podemos, enfim, nos encontrar? Fraternalmente, na segurança de um local público?

Antes de começar a escrever, já adivinhava tua resposta. Sem precisar de dotes mediúnicos, é fácil saber a negativa que virá. O que me leva a insistir? Um prazer mórbido, que castiga a tu e a mim. Um prazer cruel, de quem consegue se fazer atroz, ainda que por fugazes instantes. Um prazer do qual não me privo e que desfruto com gula, com ira, com luxúria - com todos os pecados que a ele puder atribuir.

Quanto maiores os pecados, quanto maior a atrocidade que nos inflijo, mais gozo.

Para aumentar aquilo que é teu deleite e tua tortura, segue um corte de uma pintura de Klimt.

Wasserschlangen II - Gustav Klimt (corte)


sábado, 19 de agosto de 2006

as plumas douradas do desejo

Há que se destruir a estátua feita de cinzas: ela é enganadora.

Como a fênix suporta seu interminável ciclo de morte e renascimento? Vive por cinco séculos, morre e renasce a partir das suas próprias cinzas, a nova fênix, paradoxalmente a mesma que morreu. Que realmente não é a mesma, pois a cada ciclo de 500 anos respira outras ares, cultiva diferentes sonhos, chora por outras desilusões.

Parece que nunca foi vista uma fênix pairando pelos céus do Egito e da Arábia, muito menos pelo poluído céu paulistano. Será que se cansou do eterno ciclo morrer-renascer e o interrompeu? Ela é conhecida através dos seus retratos: aparece sempre como uma ave bastante semelhante à aguia, com plumagem exuberante, porém, vermelha e dourada. Ruiva e re-nascida.

Como esta Re-nata aqui, cuja alma já não consegue elaborar novos sonhos, cansada de tantos ciclos de fênix. Como criar novas ilusões, sabendo que a maioria delas terá fatalmente como destino o naufrágio em alto mar ou os sete palmos de terra mais a pá de cal? É sedutor demais não sonhar, não almejar, não ansiar, evitando, assim, o risco da decepção. Sedutor e enganador, pois não seria, assim, um renascimento. Seria como se a fênix recolhesse suas cinzas e as moldasse em estátua na forma do corpo antigo, ao invés de reconstruir-se a partir delas. Seria uma representação morta de fênix, sem asas, sem plumagem de fogo, sem vida.

Não quero renascer, estou cansada do meu interminável ciclo: já nem sei mais quais sonhos sonhar. Já não sei mais o que quero, do que gosto, o que me satisfaz. Pelo quê lutar? A exaustão é tamanha que cega e ando às escuras, ainda um arremedo de Renata, atrasando minha reconstrução.

Com decepção, me vejo vivendo como aqueles por quem tanto me angustiei, escravos de um conjunto de neuroses e regras que os posiciona no mundo. Quero voar, não serei prisioneira de mim, estátua moldada em cinzas de antigos sonhos. Daonde virá a força que preciso para sonhar? A fé, a coragem, a esperança... Não esta esperança cinza, esta esperança resignada, este saber que assim é a vida e mais não há...

Viver assim é como morrer em vida, é perambular pelas ruas de São Paulo como um espectro, um fantasma que raramente reflete o arroubo de que era feito, as chamas da sua alma e do seu querer representadas por cor esmaecida e triste.

Reconstruir-se após a depressão é um longo processo. É preciso esquecer aqueles sonhos e ilusões enterrados ou naufragados. Não, talvez nem me lembre tanto deles. Lembro da quantidade de sonhos que foram mortos, apenas... Voltar a viver é poder voar, arriscar, querer, ansiar, desejar. Redescobrir ou recriar o desejo. O que eu quero?

Sair da ausência em si traz já enorme conforto. São os primeiros sinais de esperança, do sentir e do querer que se apoderam da nossa alma. O risco é se acomodar com os primeiros sinais, com a esperança meramente rascunhada, cujos traços mais marcantes são os da desilusão e da descrença.

Um segundo a mais que se permaneça neste estágio transforma o conforto em tortura. O corpo que não serve em mim, a alma que não suporta este corpo, um coração estranho a bombear sangue e vida pelas minhas veias tortuosas e quase revoltadas. Vida!, elas pulsam, vida!, queremos vida! Queremos que o sangue em nós corra como lava, aquecido por anseios, amores, desejos e, sim! Sim, também as tristezas e decepções que compõem esta jornada. Maldita ou bendita, nós queremos o movimento dos vivos.

A estátua não me serve, não a quero. Agora, mal consigo escapar do refúgio que nela fiz no primeiro momento. Mas, sei que urge o dia em que meus olhos se abrirão mais inocentes, meu corpo mais ágil, adornado com as plumas douradas do desejo. Com o arroubo daqueles que renasceram.

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

sonhos que se enterram a sete palmos

Foi inesperado e, como todo nascimento, veio através da dor.

Não o matei, mas tive que cuidar de todos os preparativos fúnebres de seu enterro.

Suspeito que tenha nascido já condenado. Dediquei a ele tanta alegria e energia que não tinha, mas arranjava. Foi vão, entretanto, o esforço todo e adivinhei a brevidade da sua existência -- sua morte não foi surpresa. Mesmo adivinhada, a morte dói latejante. Cuidar do seu enterro e pranteá-lo consumiu mais daquela energia que já não tinha para dedicar-lhe, resultando em falência - espero que temporária - do meu gerador energético.

Enterrei este sonho ao lado de tantos outros que tive, na mesma pradaria verde e ensolarada. Não há lápides ou quaisquer marcos no meu cemitério. Olhos atentos talvez percebam o pedaço de terra recém revolvida, onde a grama ainda cresce tímida e que hoje abriga seu mais recente inquilino, meu sonho morto.

Nesta cova, o ar é levemente mais fresco e o sol se lança com suavidade, permitindo que as sombras formem penumbra contida, velando pelo último sopro de esperança que lamenta e anseia por mais alguns segundos do sonho. Segundos, segundos, segundos que adoçariam minha boca, mente e meu corpo por momentos eternos.

Meu cemitério de sonhos é também um campo de flores. Espécies improváveis que brotaram de uma terra que abriga cadáveres de sonhos em putrefação. Nada mais forte e indomável que o poder transformador da Natureza, seus corpos e seres, que fazem vida e sorrisos surgirem de morte e pranto.

Até que o processo de transformação se complete, aquele vento quase gélido trará resquícios de aromas desejados e a memória de sentimentos que se recusam ou se demoram a morrer.

Visto de longe, é apenas um prado radiante e repleto de aromáticas flores coloridas. Não há quem imagine quantos sonhos precisaram ser enterrados, anônima e sileciosamente, sem o alarde dos grandes funerais; não há quem imagine de quantos sonhos mortos foram feitas estas flores, quase fúteis e vãs na sua beleza perecível.





FarmGarden ou Bauerngarten - Gustav Klimt, 1905-6

(11/08/1006)